sábado, 16 de novembro de 2013

PORQUE HOJE É SÁBADO...


Os pregões que me lembro do Recife "matuto".

Paulo Lisker, de Israel

Sobre o famoso "cachorro quente" (não este da salsicha, porem aquele que é característico do Recife), vale à pena abrir um parêntesis.
Devemos deixar as coisas em "pratos limpos" apesar deste produto nunca ter visto um prato na vida, ainda mais prato limpo.
Ele era saboreado com as mãos, uma delas segurava o "cachorro" e a outra servia de babador para evitar manchar a camisa com o molho vermelho gostoso pra chuchu que escorria do pãozinho com o recheio da mistura que compunha este alimento de rua.

“O VENDEDOR DO CACHORRO QUENTE”

Antes de tudo seria de bom proveito esclarecer que cachorro nenhum está envolvido nesta comida popular de rua.
De onde vem este nome sinceramente não sei, possivelmente algum "gozador" sarcástico numa brincadeira de mau gosto assim a batizou. O pior de tudo foi que o nome pegou em todos os países onde existe esta comidinha rápida nas ruas da cidade.
Este vendedor também passava na nossa rua em direção a algum lugar onde teria condições mais seguras para colocar sua carrocinha, o fogareiro a cesta com os pãezinhos, a panela com a clássica "gororoba" (uma comida com componentes não bem identificados), que exalava um cheiro excelente e sabor inigualável (ver ilustração "infantilizada" no cabeçario do texto).
"Chef" (cozinheiro mor) de restaurante nenhum, mesmo os de maior luxo e prestigio nunca conseguiram imitá-lo.
O aroma desta "gororoba" esquentando na panela (na realidade um caldeirãozinho mixuruca) era de endoidar a qualquer mortal.
De preferência instalava sua carrocinha numa praça ou diante de um colégio, estádio de futebol no dia do jogo ou nas grandes festas populares recifenses, pois ali encontrava- se a sua maior freguesia. 
Entre outros, me lembro do Americano Batista que ficava na Praça do Peixe Boi ou do Ginásio Pernambucano, na calçada oposta daquela junto ao Rio Capibaribe ou mesmo no Pátio da Santa Cruz onde moravam muitos clientes para seu "manjar celestial".
Dizem os "gozadores" (sarcásticos ou cínicos) que quando chegava o homem do "cachorro quente" no Pátio nos dias de festa, os sinos da igreja, dobravam anunciando o evento! Sei lá se é mesmo verdade ou outra gozação? Fábula urbana, será?
Era muito comum ver também o dito cujo defronte da Faculdade de Direito no Parque 13 de Maio.
As praças em geral eram preferidas para vender com calma o seu "inigualável cachorro quente".
Dizem que quando ele cozinhava a "Gororoba" para encher os pãezinhos, as aulas dos colégios ou das Faculdades eram interrompidas e o pessoal saía feito doido (loucos, na fala do povo) para comprar "cachorro quente" (este do Recife, não o clássico "hot dog" ianque com uma salsicha vienense enfiada no cu do pão, com mostarda, ketchup ou maionese para melhorar o gosto).
A "gororoba" cozinhada que ele colocava no meio do pãozinho, era na realidade um picadinho cozinhado com diversos tipos de carnes de segunda em geral de porco. Ademais estava presente o salsichão com muita banha, chouriço, condimentos diversos, muito colorau, cominho, pimenta do reino, toucinho cebolinha e pimentão verde bem picadinho, coentro e aquele "toque mágico" que dava a esta "gororoba" um gosto e cheiro único entre todas as comidas de rua.
Como não se lembrar desses 'fast food' ambulantes, posicionados estrategicamente nas entradas dos estádios de futebol do "Leão" da ilha do Retiro (Sport), do "Timbu Coroado" (Náutico) ou do Alçapão do Arruda, da "Cobra Coral" (Santa Cruz).
Quem não se lembra dessas barraquinhas vendendo "cachorro-quente" nas entradas dos clubes sociais nas festas de carnavais do Club Internacional, Clube Português ou na "Manhã de Sol do Sport, alem daquelas que estavam sempre lotadas de fregueses nas festas do Pátio de Santa Cruz, na Festa da Mocidade, no parque 13 de maio.
Agora imaginem um desarranjo intestinal ou coisa que o valha nestas grandes concentrações publicas.
Seria algo parecido a um "estouro da boiada".
Uma multidão aflita correndo para o mato para se livrar do "veneno gostoso" ingerido um par de horas atrás e cujo resultado sem dúvida nenhuma poderia entupir o Recife de merda que nem os dois rios juntos (Beberibe e Capibaribe) poderiam limpar a cidade da bosta acumulada.
No dia seguinte estaria nas manchetes dos jornais do Recife:
"Uma pequena catástrofe causada pela iguaria conhecida como "cachorro quente", fede em todo canto, desta vez favor não culpar o governo".
Imaginem se isso acontece mesmo. Fim da picada.
Falando a verdade aqui entre nós, acho que nunca comi cachorro quente. Parece mentira, porem na minha vida de menino no Recife só conhecia o cheiro desta iguaria.
Se comi foi escondido e com um medo "danado que me pelava".
Nessas condições não se pode saborear comida nenhuma.
Donde esta atitude emerge?
Aqui entra o aspecto gastronômico judaico da coisa.
O judaísmo na realidade é uma filosofia de vida depois de ser religião.
Todo e qualquer aspecto cósmico tem seu relacionamento com esta filosofia de vida e nada fica fora do seu alcance.
Então não teria também o que dizer sobre "cachorro quente"? Impossível!
Não foi à toa que Einstein fez seu "doutorado" na "teoria da relatividade. Assim é esta filosofia judaica, se relaciona com tudo e para ela, tudo é relativo. Pronto, "Relatividade".
Para os judeus daquela época no Recife, tudo estava em contra o "cachorro quente" como comida, com Einstein ou sem ele.
Começa pelo ingrediente a carne de porco, proibida pela religião judaica como comida humana.
Depois, a falta total de higiene na sua preparação, conservação dos produtos e dos restos que provavelmente seriam requentados no dia seguinte. A venda a céu aberto, a poeira e o pior ainda é com a fauna e flora de micróbios, bactéria e outros "bichos do mato" que naquela gororoba poderiam se desenvolver e causar problemas no aparelho digestivo e quem sabe até a morte por envenenamento. Vige, sai pra lá.
Então nestas condições não precisavam muito mais para que as nossas mães proibissem terminantemente de comer esta "porcaria" feita na rua.
Diziam em iídiche (linguagem que só eles entendem): "Got zol uphitn essen der drekisher cachore quente vuz goim machn in der gass mit shmutzike hent und ver veiss vuz zei guiben arain in top" (Deus nos livre de comer esta comida de merda, feita na rua e só o diabo sabe o que eles botam dentro daquela panela).
Triste, mas esta foi a realidade para nós a garotada judaica do Bairro da Boa Vista.
Seu Gláucio sabia desta proibição e quando passava com a sua carrocinha nas ruas de concentração de casas judaicas corria depressa feito um "foguete do ar" nas épocas de São João e ia se instalar na praça mais próxima. Quanto mais longe dos judeus, melhor!
Um dia disse ele a dona Santinha que fazia tapioca e milho assado no seu fogareiro a carvão na esquina da Travessa do Veras, que daria de graça a todo menino "galego judeu" (assim muitos cristãos, pejorativamente nos denominavam), que tivesse a coragem de comer um "cachorro quente", ali na praça na frente de todo mundo.
Parece que só dois meninos (Julio magro e Kerzman) tiveram a coragem de comer abertamente, deixando o resto da nossa "tropa" com água na boca, babando e morrendo de inveja e vontade.
O problema foi que a noticia chegou a casa deles, pois sempre tem um delator em qualquer grupo. Um menino (parece que foi Rubinho) contou a sua mãe o que se passou na praça e ela por sua vez logo transmitiu a noticia a quem lhe compete. Foi um reboliço na comunidade.
"Quem já viu uma coisa dessas, comer cachorro quente na rua, ainda mais na praça, todo mundo vendo, que vergonha e descuido com a saúde. Um mau exemplo". Comentavam cochichando as senhoras nossas mães e tias.
Aos dois garotos "rebeldes" foi aplicado o tal castigo que durante um mês não iriam ao cinema Politeama ver o seriado de Flash Gordon nas quintas feira.
Isto é um dilema pesado para um menino, "cachorro quente ou Flash Gordon". Vê lá hein, fogo na roupa.
Hoje seria necessário um psicoterapeuta para solucionar o problema, mas naquele tempo quem pensava assim? Ninguém!
O castigo era o melhor remédio para todos os males da juventude desgarrada.
Assim nós meninos judeus nos criamos no Recife.
Não digo que nossas mães estivessem erradas quando foram contra o "cachorro quente" como comida pra gente, talvez pudesse ser boa pra cachorros e olhe lá, diziam elas.
Desta forma nos privaram de um "fast food" que não sei se com este gosto e cheiro encontraríamos outra "comida de rua" igual pelo mundo afora.
Qual não foi a minha surpresa ao ler ultimamente relatórios de Secretaria da Saúde de São Paulo que provavam por A+B que esta comida estava em quase 90% dos casos investigados com índices fora das normas de tudo que é nocivo e proibido para a alimentação humana.
Vejam lá, as nossas mães meio século antes sabiam disto sem laboratórios sem instrução farmacêutica, sem mestrado ou doutorado, que aquela gororoba não era comida pra gente e não se deixavam levar como nós pelo cheiro que exalava aquele caldeirãozinho com uma comida de composição não muito bem identificada.
Para cachorros "vira lata" talvez, e isso por que naquele "tempo matuto", ainda não havia o "SOS ANIMAIS" ou semelhantes.
Isto posto, seria de bom proveito relatar em tempo útil, que apesar de tudo isto, não nos foi dado a conhecer de algum surto de envenenamentos ou caganeiras violentas que tenha levado a entupir os hospitais do Recife ou trabalho adicional aos coveiros do cemitério de Santo Amaro, ainda bem.
Porem nada disso convencia as nossas mães de abrir mão desta proibição e que de uma forma voluntária cumpríamos ao pé da letra.
Passaram-se anos até que nos libertamos desta proibição e deixamos de ser "bestas" e começamos a comer deste "manjar dos deuses" por nós cobiçado durante décadas.
Agora posso afirmar com categoria que ele era mesmo muito cheiroso e gostosissimo de se comer no lanche do dia.
E já que estamos falando nisso, quando acontecia que um colega ou outro reclamavam duma caganeira brava ou dor de barriga com vômitos, a gente brincava com o sofrimento deles e dizíamos: Comeste "cachorro quente", não foi? Queres um carro de aluguel (taxi, naquele tempo) para o Pronto Socorro, ou já chamamos de uma vez a ambulância com um padre para a última unção?
A resposta já não ouvíamos, pois o dito cujo saía "aloprado" (às pressas, as carreiras, sem ver ninguém pela frente) em busca de um cágador (vaso sanitário) no bar mas próximo ou atrás de uma moita no jardim.
Eu mesmo não posso testemunhar, mas amigos meus dizem que a "peidaria" se ouvia até Jaboatão. Os miúdos nos casebres corriam e se agarravam as saias da mamãe e diziam: "Mãe ta trubuando, já, já vai chuber mãe, escancaro as janeias?
A noite chegava e no Recife ela chegava cedo para o bem geral dos namorados e amantes do "cachorro quente" a estilo recifense.
P.S.
O "cachorro quente" também era conhecido como:
- "Gordo e quente",
- "Comeu morreu".




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