sábado, 25 de maio de 2013

PORQUE HOJE É SÁBADO...


O CHOFER SIMEÃO E SUA FUBICA* - Parte II

Paulo Lisker, de Israel

Era nos anos trinta, talvez no principio dos anos quarenta. Naquele tempo tudo durava uma eternidade. Ninguém se apressava em comprar nada novo, tudo se arrumava, meia sola nos sapatos, soldar as panelas furadas, afrouxar as calças, os sapatos, remendar as meias, tingir roupa desbotada, nada se perdia tudo tinha como recuperar e colocar de volta ao uso normal. Eram outros tempos.

A fubica do chofer Simeão, Ford Bigode do ano 1929, parecia que tinha saído agorinha mesmo da fabrica de carros, nem um arranhãozinho, nada machucado a tinta brilhava que doía até na vista quem olhasse para ela nas horas de muito sol e isto é coisa que não falta no Recife.

Eita "bichinha" bonita danada e a buzina dela era algo que nos dias de hoje, nem pensar. Toda gente se admirava, ao ouvir:

AUHA-AHUA-HAHUAAA. Que beleza de buzina era de dar gosto. AUHA-AHUA-HAHUAAA. Era como se a fubica quisesse falar com os transeuntes e dizer: "olha aí, estou passando, como vai gente boa, tudo bem, AUHA-AHUA-HAHUAAA".

Tudo que eram postigos e janelas se abria e as domesticas só voltavam aos seus afazeres depois de ver aquela beleza de fubica deslizar defronte da casa.

Nas ruas não tinha quem não torcesse o pescoço ou parasse pra ver.

Fubica conservada desse jeito só o senhor Simeão sabia como, todo minutinho vago ele tirava a caixa que continha o seu segredo, um trapo de pano macio e uma lata de cera "Dupont" (Me lembro do cheiro desta cera) e se dedicava a fazer a sua fubica brilhar mais que o "rei sol".

Era assim que naquele tempo as coisas duravam por mais de uma geração.
Diziam os brincalhões da época, que se os choferes cuidassem desse jeito da sua família, não haveria divórcios.

Simeão era assim, celibatário. Cuidava de si e da sua fubica.

Na realidade o proprietário da fubica era o Comendador de Arruda, que comprara naquele ano três carros dessa marca e os colocou nas diversas praças para servir de carros de aluguel (Táxi), à aristocracia da cidade do Recife.

Uma delas o Comendador confiou ao chofer Simeão que era um homem serio, crente, honesto e tinha diploma de mecânico de automotores, fornecido pela Opel do Recife.

Não gosto de contar, mas vou dizer para vocês aqui em segredo que a inveja dos outros choferes da praça era enorme e ficavam mais que arretados da vida quando um pirralho que vinha com a família, agarrava a mãe pelo braço e dizia:

- Mãe ta ali o senhor Simeão com sua fubica, que sorte né mãe, alugue ele pra nos levar para visitar tia Mali na Madalena.Vamos com ele mãe, vê que carro bonito danado.

Os outros choferes, não sabiam onde meter a cara e se escondiam atrás de um jornal (o suplemento dos esportes, em geral), tirando baforadas dos charutos nacionais que sempre estavam num canto da boca.

Agora voltemos a "vaca fria" em continuação à viagem que se iniciou no Cais de Santa Rita em direção a Praça Maciel Pinheiro com um passageiro que momentos antes tinha chegado do interior de Pernambuco em busca de parentes no Recife.

A fubica de seu Simeão seguia rodando devagar pelas ruas apinhadas de transeuntes levando as compras efetuadas momentos antes, carregadores com moveis na cabeça (sempre cantando), carroças puxadas a cavalo (animais de uma raça "diminuta" que a genética negativa formou no nordeste do Brasil) e até cachorros vadios ("Vira Latas", na língua do povo), atrapalhando o transito.

De tudo isso dizia senhor Simeão:

- O que mais me incomoda é a grande quantidade de bosta dos cavalos no meio das ruas e que ninguém se preocupa de limpar. Ai dos meus pneus Firestone de banda branca, toda viagem por aqui, eles ficam todo melados desta merda, Nossa senhora! Trabalho danado para limpar no fim do dia.

Ao passar defronte da famosa estação de trens da "Gretoeste", surgiam novamente os vendedores ambulantes e aqueles das barraquinhas anunciando seus produtos chegados agora mesmo no último trem da linha norte.

No pátio interno da estação, do outro lado do paredão, ficavam as "Marias Fumaça", chiando e recebendo algum tratamento mecânico antes de se atrelar novamente aos seus vagões, para mais uma viagem ao interior pernambucano.

Na pracinha em frente à estação estava o eterno vendedor de abacaxi descascado com arte, sem deixar nem sequer um espinho na sua polpa, sempre cortados em quatro partes com um pauzinho espetado para se poder ir comendo no caminho ou sentado no local, na sombra dos enormes pés (Arvores) de fícus Benjamin que arborizavam o local.

As pilhas de abacaxi de cor verde (muitas vezes meio ácido, bom pra refresco) e os de cor amarela, doces como mel e de um aroma que se alastrava até a Ponte Velha, lá pro lado da Boa Vista.

Estes abacaxis estavam à espera dos compradores em atacado para leva-los para outras feiras no Recife e nos arrabaldes. O cheiro era embriagador!

No outro lado, na calçada oposta, estavam as pilhas de melancias de Pesqueira. As de estrias claras na casca, nunca foram muito doce, porem os judeus sempre apreciaram esta variedade de casca grossa.

As outras provenientes de Escada eram melancias enormes de casca verde escuro, algo mais doce que as outras de estrias, porém com muita semente. Era comendo e cuspindo.
A zona de produção de melancias em Pernambuco era mormente chuvosa e desta forma a fruta nunca alcançava a doçura das melancias de regiões mais secas, sei lá, pode ser. 

Destas de casca grossa, algumas donas de casa judias faziam conservas, assim como, de pepinos ou pimentões, técnica trazida da longínqua Europa de invernos frios e judeus pobres, que comiam no inverno, casca de melancia conservada no vinagre e sal. Creiam-me, provei e é uma conserva deliciosa. Casca de melancia. Vejam o que faz a necessidade, assim é a vida. 

Pilhas de manga rosa, espada e manguitos diversos, que vinham de Prazeres e Engenho do Meio, tinha para todos os gostos dos clientes. 

Encostados e pendurados no paredão da Estação Central estavam os quadros de pintores locais com suas "obras primas". Pinturas "inocentes" em aquarela, óleo, e até material mais sofisticado (butique, esmalte, etc.), estava estampado o nordeste brasileiro, sua gente, seus bichos, as plantações, as danças da roça e a exuberante vegetação tropical.

Parece que o Sertão com suas periódicas secas e os resultados funestos por ela causada, "a terra nua ardendo, carcaças de animais", os "paus de arara", o êxodo rural, a fome, os olhos tristes do sertanejo, não eram modelo ideal para estas pinturas "inocentes". Não constavam ou não eram temas para vendas rentáveis. 

Estava presente quase sempre o vendedor de galinhas vivas da raça carijó, estas de pescoço pelado e vermelhão. 

Mais de lado, debaixo de um fícus frondoso, mode a sombra, um "montão" de gaiolas cheias de passarinhos dos mais diversos, que eram pegos em alçapões (feitos de "barba de bode", um capim rústico e lenhoso).  Vinha de todo o nordeste e eram vendidos a preços irrisórios. Os mais procurados eram os papagaios (louros e se fosse falador, o preço ia lá pra cima), canários, galos de campina, e periquitos. Nunca faltou mercadoria nem compradores. Era o tempo que o nordeste tinha seu habitat vegetal quase intocável e isso dava muito passarinho. 

Estavam ali presentes os vendedores de loterias estadual e nacional, vendendo ilusões. 

Era muito comum encontrar também os vendedores de letras das músicas populares da época. Esta mercadoria sempre foi muito procurada pelo público, pois "cantores de banheiro" sempre houve no Recife romântico daquela época.

Nesta área, estavam presentes os repentistas ou violeiros sertanejos, dando um concerto da sua arte, angariando uns tostões para comprar cordas rebentadas dos seus violões e o almoço num bar junto da Ponte Velha.

Tudo se vê pelas janelas da fubica do seu Simeão que vai rodando pelas ruas do Recife.
Atravessa a Ponte Velha, de lá se vislumbrava toda a beleza da cidade entre ao rios e pontes, não tenham duvida ela era mesmo a Veneza Brasileira.

Na vazante do Capibaribe, dezenas de "catadores" de siris. Eles, assim como as suas próprias vidas, estavam atolados na lama do rio até meia canela, procurando tirar desta, o seu mísero ganha pão diário. Logo que tinham "caçado" duas dúzias desses "bichos", saiam com eles pendurados em ráfia e cobertos com a própria lama do rio.

Psicologia de "pesca siris", dar-lhe a sensação que ainda não chegou à hora e os "bichinhos" estão, todavia nas "locas" do rio Capibaribe. Acho que nem Freud pensou nesta situação para evitar o funesto pensamento dos siris e caranguejos que mais um pouco estarão sendo jogados num caldeirão de água fervendo, então para que antecipar a agonia, a lama cobrindo os coitados seria o melhor dos remédios. Ta vendo seu Freud, como o nosso matuto é astuto? E muito! 

A vegetação exuberante para todo lado que se olhava, vazantes e enchentes, maré alta e maré baixa, jangadas de pau balsa e velas de sacos de sal ou açúcar, barcaças no meio do rio e dois fortes tirando areia para construção civil, pontes pra "dar e vender" e uma delas até giratória, a primeira do Brasil.

Bondes para todo canto, fubicas* (Ford Bigode do ano 29), corso de carnaval, frevos para o folião, gente pacata e acolhedora do Recife, será que hoje ainda é assim?

A fubica fumaçando, seguia pela Rua Velha e já - já chegaríamos à Praça Maciel Pinheiro e ao endereço solicitado.

Levou tempo, pois seu Simeão era muito conversador e os passageiros gostavam da conversa fiada dele. 

Ao passar pelos Correios e Telégrafos estava um grupo grande de gente discutindo e lendo uns comunicados que os funcionários de vez em quando colavam no quadro de avisos.

-"Que aconteceu? Alguma greve?", perguntou o passageiro.

-"Não senhor, neste tempo de Getúlio, ninguém tem coragem de fazer greve, oxente!"

-"Então o que é esta balburdia nas portas dos Correios?"

-"Olhe, foi uma coisa séria", responde meio sem jeito o senhor Simeão, "afundaram um comboio de barcos brasileiros que estavam transportando tropas para reforçar as posições dos americanos no nordeste. Falam muito num tal Baependi, não sei se é o almirante da esquadra ou o nome de um dos barcos".

-"E quem os afundou senhor Simeão?"

-"Dizem que foram os submarinos alemães nazistas e depois que torpedearam, subiram "os filhos da peste, safados" à tona e metralharam os sobreviventes, para não deixar testemunhas!"

-"Quando foi isso?"

-"Não sei não, acho que foi essa noite! Agora com sua licença podemos estacionar na porta da sua casa?"

-"Pois não seu chofer, tire a minha maleta, aqui está o que combinamos dois contos de réis, está certo? Conte, conte, nunca confie, ta ouvindo?

Sabe de uma coisa, ainda não encontrei meus parentes no Recife e já estou com saudades do meu Cabrobó."

O chofer coloca o dinheiro recebido numa capanga feita em Bezerros, coça a cabeça e responde:

-"Olhe seu doutor, não se chora pelo leite despejado (derramado), saudade é uma virtude e o que será, será! Assim dizia o sábio Rei dos judeus, Salomão".

Não sei vocês minha gente que terminaram agora de ler esta crônica do "tempo da onça", mas eu confesso, não consigo reter as lagrimas. 
Eita tempo gostoso de quando éramos felizes e não sabíamos.
Fim de estória.
*FUBICA: Dizem que é uma "corruptela" do diminutivo da palavra Ford, será?
FORD, fordico, furdica, fubica e aí ficou.
Mas que era uma obra de arte, não tenham duvidas. Serviu de "Carro Escola", até nos anos 50. Num deles tirei a minha carteira de habilitação.
Quando encostei o carro na calçada ao terminar o exame, me disse o examinador algo que não esquecerei nunca mais: Seu Paulo, agora vou exigir que a prefeitura do Recife troque todos os postes de metal por postes de borracha. Assine logo aqui, o senhor é um verdadeiro "munheca de pau".
Ai meu Deus, quase choro de desgosto.
Porém a licença brasileira para dirigir, revalido em todo o canto do mundo, pois não ficou registrado nela que sou um "munheca de pau", ainda bem.

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