sábado, 12 de fevereiro de 2011

PORQUE HOJE É SÁBADO...


ACERTO COM ESPÓLIO

Mauro Santayana

Criado entre os seus irmãos de primeira classe, uma vez que filhos da mulher legítima, sendo ele nascido de ventre pardo e rasteiro, tratou de ser astuto. Chegara já parrudinho à casa nobre, e com algumas letras na capanga: gibis daquele tempo, com histórias do Capitão Marvel e do Príncipe Submarino e também a pequena coleção de "Eu Sei Tudo", presentes do Juca Farmacêutico, poeta parnasiano, para a quem a mãe trabalhara como arrumadeira e balconista.

Entendeu logo que não adiantava, nos seus oito anos e meses, reagir contra a hostilidade, que, ali, tinha duas caras. Uma, era a da piedade justificada com ironia, "afinal o coitadinho não tem culpa de ser filho de rapariga", com que a madrasta explicava a sua aquiescência em recebê-lo, acrescentando que "no homem nada pega, é direito dele buscar na rua a sem-vergonhice que não encontra em casa". A outra era a da rejeição aberta dos meio-irmãos, sobretudo da mais velha, que tinha uma verruga feia na orelha direita e era chamada pela outra irmã, mais nova e também perversa, de Maria Brinquinho. Ele agüentava tudo, e, no tudo, servir de criado, apanhar dos mais velhos e vestir e calçar o que os outros desdeixavam.

Quando, cinco anos depois, já sabia montar, laçar e fazer contas sem lápis e sem papel, tirou duzentos mil-réis do alforje onde o pai guardara o dinheiro de uns bois vendidos na véspera e, duas e meia da manhã de noite de lua cheia, foi-se embora para o mundo.

É bom não ter para onde ir, porque, assim, a gente tem todo o lugar para ir, pensou. A mãe morrera uma semana depois que ele chegara à casa do pai, mas só ficou sabendo disso meses depois, quando Juca Farmacêutico, de passo pelo arraial, lhe contou. Quando o pai o buscou, ela já estava no hospital da cidade, com um derrame prematuro, quase menina em seus vinte e quatro anos.

Agora retornava, rico, poderoso, para arbitrar a repartição da miséria. Com o pai se encontrara uma única vez, e por acaso, quinze anos depois de sua fuga — e se registre a circunstância — em bordel da rua Mariana, em Belo Horizonte, da qual ambos eram clientes eventuais e, o que é pior, da mesma mulher, mulata empalidecida, de olhos grandes. Conhecido o jogo do acaso, não mais freqüentaram o estabelecimento. O pai, envelhecido e viúvo, tentara dar-lhe alguma dignidade (ou, quem sabe, proteger os bens restantes), fazendo-o seu testamenteiro, uns seis ou sete anos antes de morrer de repente, ao desmontar, em frente ao fórum de Araçuaí. Os irmãos esparramavam pelas redondezas a decadência. O que sobrava eram terras invendíveis, de tão ruins, os móveis antigos, o alambique seco e azinhavrado, um resto de tropa, velhos e aposentados bois de canga.

Reuniu os irmãos, que o receberam na sabujice dos canalhas, e sorriu vingança. Garimpeiro de seguidos bambúrrios, mandara obturar, com platina e diamantes, a coroa de seus molares, que refletiam á claridade de maio. Tirou da valise lembranças para todos — relógios, canivetes, cortes de roupa. A Maria Brinquinho, engastalhada na solteirice, trazia presente especial: um par de brincos de pesadas águas-marinhas, de azul profundo, quase safira.

— O pai não deixou nada que prestasse, mas vou cuidar de vocês. Afinal, estou devendo duzentos mil-réis ao espólio — e quero pagar.

Texto extraído da revista "Palavra", Editora da Palavra - Belo Horizonte (MG), ano 1, nº 7, Outubro de 1999, pág. 124.

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